Escritor maldito, engajado e notavelmente à frente de seu tempo, Lima Barreto assistiu horrorizado e impotente à popularização do futebol no Rio de Janeiro do início do século XX. Indignado com a corrupção e racismo promovidos por esse esporte, nunca deixou de denunciar suas “verdadeiras atrocidades”.
Alma triste, mas mente lúcida. Em um texto de 1921, Afonso Henriques de Lima Barreto desabafava contra “as gordas subvenções com que são aquinhoadas as sociedades futebolescas e seus tesoureiros infiéis” (revista Careta, 01/10/1921). Se as suas palavras tivessem encontrado maior eco na sociedade da época, talvez o Estado brasileiro se teria poupado — 93 anos depois — da organização à custa do contribuinte da Copa mais dispendiosa da história.
No entanto, quando Barreto criou em 1919 a efêmera “liga contra o futebol”, estava provavelmente ciente que o seu combate era já perdido — e, portanto, essencial. Justificando a necessidade de lutar contra o “jogo de pé”, ele escreveu “O que me moveu (…) a fundar a Liga foi o espetáculo de brutalidade, de absorção de todas atividades que o futebol vinha trazendo à quase totalidade dos espíritos nesta cidade. (…). Percebi logo existir um grande mal que a atividade mental de toda uma população de uma grande cidade fosse absorvida para assunto tão fútil e se absorvesse nele » (revista Careta, 08/04/1922).
Em uma tentativa desesperada de minar o mito nascente do futebol visto como cadinho da brasilidade, Lima Barreto colecionava recortes de imprensa sobre acidentes em relação à paixão pela bola. Os seus escritos sobre o assunto estão repletos de patéticos relatos de brigas, e evocam inclusive o suicídio de uma jovem mulher negligenciada por um esposo viciado na torcida. Se Barreto vivesse nos nossos dias, podemos imaginar a sua revolta diante da história deste juiz decepado depois de ter matado um jogador no Maranhão; ou ainda daquele jovem que faleceu após ser atingido por um vaso sanitário jogado desde a arquibancada de um estádio em Recife.
A final dos anos 1960, Norbert Elias foi um dos primeiros a considerar o esporte como objeto de estudo legítimo pelas ciências sociais. Para o sociólogo alemão, a prática esportiva moderna se inscrevia na continuidade do “processo civilizatório”, graças ao qual a violência física seria sublimada por práticas pacificadas e controladas; oferecendo destarte um exutório inócuo às agressivas paixões que habitam o coração do homem. Contudo, essa não era bem a perspectiva do nosso panfletário auriverde. Para Barreto o patriota, o futebol representava antes de qualquer outra coisa um fator “que concorre para a animosidade e a malquerença entre os filhos de uma mesma nação (…). (o futebol) tem conseguido (…) estabelecer não só a rivalidade entre vários bairros da cidade, mas também o dissídio entre as divisões políticas do Brasil » (revista Careta, 01/10/1921). A Copa do Mundo e a péssima atmosfera que paira sobre certos jogos quiçá teriam lhe incentivado a ampliar o raciocínio além das fronteiras nacionais. As recorrentes rixas entre Argentinos e Brasileiros, por exemplo, demostram que quando a bola entra em jogo, a integração latino-americana se traduz frequentemente pela distribuição de porradas na cara do hermano.
Mais contundente ainda é a denunciação do racismo que Lima Barreto observava no futebol da época. A discriminação de cor era uma questão sensível para esse mestiço, bisneto de pessoas escravizadas, que viveu antes que viesse à tona no Brasil o mito da “democracia racial”. É necessário lembrar que, nessa época, embora os jogos juntassem torcedores de todas as cores e oriundos de quaisquer estratos sociais, os jogadores negros eram proibidos de participar das competições mais significativas. Foi apenas nos anos 1930 que a inclusão acontecera. Qualificando os donos dos grandes clubes como continuadores da tradição escravagista, Barreto denunciou um sistema que prolongava, segundo ele, as velhas relações de dominação racial: “É o fardo do homem branco: surrar os negros, a fim de trabalharem para ele. O foot-ball não é assim: não surra, mas humilha, não explora, mas injuria e come as dízimas que os negros pagam” (Journal A. B. C, 10/1921).
Um autor na vanguarda das causas sociais
Embora certas das observações acima mencionadas continuem pertinentes, seria lamentável reduzir o engajamento político de Lima Barreto a esse posicionamento (um tantinho exaltado) a respeito do futebol. Além de ser autor de romances nos quais questiona, com característico humor, as próprias obsessões (ler notadamente, em relação ao quichotismo crônico, o excelente “Triste fim de Policarpo Quaresma”), Barreto era um cronista incisivo da sociedade carioca do início do século XX, movido por uma forte disposição a criar controvérsias.
Fugindo das mundanidades dessa “Paris Tropical” que pretendia ser o Centro da cidade, recentemente liberto da presença da plebe — expulsada por violentas políticas higienistas —, Barreto havia escolhido viver no longínquo subúrbio de Rio de Janeiro. Foi a partir desse “refúgio dos infelizes”, dos excluídos da cidade moderna, que mantenha o contato com o povo carioca e fustigava as elites. Costumava tomar veementemente o partido dos oprimidos e, em particular, manifestava regularmente sua preocupação com a condição da mulher na sociedade brasileira. Ou, melhor dito, com a condição da mulher pobre e marginalizada; enquanto destilava seu fel contra as burguesas. Posicionou-se nomeadamente a favor da educação das moças e contra a criminalização do aborto. Mais significativamente ainda, se insurgiu a diversas ocasiões contra o assassinato de mulheres adúlteras (ou assim supostas), um crime que parecia tolerado na sociedade da época:
“Todos esses senhores parece que não sabem o que é a vontade dos outros. Eles se julgam com o direito de impor o seu amor ou o seu desejo a quem não os quer. (…) Esse obsoleto domínio à valentona, do homem sobre a mulher, é coisa tão horrorosa, que enche de indignação. (…) Todos os experimentadores e observadores dos fatos morais têm mostrado a inanidade de generalizar a eternidade do amor. Pode existir, existe, mas, excepcionalmente; e exigi-la nas leis ou a cano de revólver, é um absurdo tão grande como querer impedir que o sol varie a hora do seu nascimento. Deixem as mulheres amar à vontade. Não as matem, pelo amor de Deus!” (revista Vida Urbana, 27/01/1915).
Mas, bem sabemos que a clarividência nunca foi uma coisa muito saudável. Profundamente abalado pelos seus repetidos fracassos diante de uma sociedade que abominava, não obstante procurasse conquistar o reconhecimento dela; sentindo-se constantemente discriminado por causa da sua pele, Lima Barreto tornou-se um alcoólatra inveterado. Por vezes rondando a loucura, na apreciação dos seus contemporâneos, foi internado duas vezes em manicômios, o que evidentemente piorou seu estado. Com a saúde estragada pelos excessos e a angustia, faleceu no dia primeiro de novembro de 1922, após apenas 41 anos de criativa e enfurecida vida.
Nicolas Quirion (carnetsbresil.wordpress.com)
A presente matéria foi escrita originalmente em francês em junho de 2014, no calor da Copa do Mundo da FIFA™. Os dados sobre futebol foram catados na tese “Footballmania. Uma historia social do futebol no Rio de Janeiro (1902-1938)” de Leonardo Affonso de Miranda Pereira. O resto vem principalmente de “Lima Barreto: crônicas escolhidas” (Editora Ática, 1995).